Esclerose Múltipla

A esclerose múltipla (EM) é a doença neurológica não traumática que mais incapacita os jovens adultos, sendo definida como uma doença crónica, imunológica, inflamatória, desmielinizante e degenerativa do sistema nervoso central (SNC). Esta doença caracteriza-se por uma desregulação do sistema imunitário que “ataca” o cérebro, levando a alterações da dinâmica funcional do SNC que afetam negativamente a atividade nervosa complexa e a função da medula espinal, gerando limitações e incapacidades que condicionam a vida da pessoa a vários níveis, como escolar, profissional, familiar e na sua independência.
A EM afeta mais frequentemente as mulheres do que os homens, assumindo uma incidência de 2 ou 3:1, estimando-se que em Portugal existam cerca de 5000 pessoas com EM1. É frequentemente diagnosticada entre os 20 e os 40 anos de idade, embora possa surgir, menos comumente, na infância ou na adolescência (formas infantis e juvenis) e após os 60 anos de idade (formas tardias). O que faz com que o seu impacto limitativo e incapacitante assuma uma expressão, individual e social, muito significativa.
A etiologia da EM é em parte ainda desconhecida. Contudo, pensa-se que o eclodir, ou não, da sua expressão clínica seja resultado de complexas interações entre fatores genéticos e ambientais. Desta forma, pode-se dizer que numa pessoa geneticamente suscetível, em condições ainda desconhecidas, face à existência de um fator precipitante que ativa as células T auto-reativas (e.g., infeção pelo vírus Epstein-Barr, deficiência de vitamina D, ser fumador, obesidade infantil,…), desencadeia-se uma resposta imunológica que conduz ao processo inflamatório a nível periférico e, com a ativação destas células surgem alterações na barreira hematoencefálica que a tornam mais permeável, o que possibilita que o processo inflamatório que se iniciou perifericamente chegue ao cérebro, causando lesões na mielina que reveste os axónios e nos axónios4. Tanto a desmielinização como o dano axonal resultam em alterações variadas e inespecíficas (i.e., alterações axonais difusas), podendo-se associar à desmielinização a desaceleração na condução do impulso nervoso ou falha na comunicação entre neurónios, enquanto ao dano axonal a interrupção da condução do impulso nervoso, inviabilizando a comunicação entre os neurónios. Desta situação, resulta a perda de glias e de neurónios, levando à atrofia cerebral, o que confere um caráter neurodegenerativo à EM.
A evolução da doença apresenta um padrão muito variável. Os pacientes podem ter um agravamento dos sintomas (i.e., período de surto) seguido de remissão (i.e., período de ausência de evolução da doença), deterioração gradual e progressiva da sua funcionalidade ou uma combinação de ambos. A EM é geralmente classificada em quatro tipos principais, caracterizados em função da progressão dos sintomas ao longo do tempo2:
1. EM Surto-remissão (EMSR): assume-se pela presença de surtos claramente definidos, seguidos por total ou parcial remissão dos sintomas, sem progressão da doença nos períodos entre surtos.
2. EM secundária progressiva (EMSP): apresenta-se com um início de surto-remissão, seguido por uma progressão da doença sem surtos ou com surtos ocasionais.
3. EM primária progressiva (EMPP): é, entre os principais tipos, a menos comum e é caracterizada por um agravamento progressivo dos sintomas desde o seu início, sem surtos ou remissões, embora possa existir um alívio temporário dos sintomas.
4. Forma progressiva com surtos (FPCS): é definida por um agravamento progressivo dos sintomas desde o início, acompanhada de surtos, com ou sem recuperação completa, sendo o período entre surtos caracterizado por progressão contínua da doença.
Além disso, apesar da controvérsia, há quem considere ainda um outro tipo, a EM benigna. Este tipo de EM apresenta-se inicialmente por surto-remissão, mas, mesmo depois de terem passado muitos anos, a incapacidade mantem-se reduzida. Ou seja, os pacientes não têm ausência de sintomas, mas estão funcionais, sem restrições na atividade laboral e doméstica por um período superior a 15 anos3. A estes subgrupos clínicos, acrescem algumas variantes raras e menos comuns de EM, que evoluem de forma aguda e fulminante, com taxas de morbilidade e mortalidade elevadas, como são a variante de Marburg, a variante concêntrica de Balô, a EM óptico-espinhal e as formas pseudotumorais ou tumefactivas4.
Quando a EM se expressa significa que o cérebro atingiu o seu ponto máximo de capacidade para compensar as alterações decorrentes dos mecanismos fisiopatológicos que lhe estão associados. Por consequência, dá-se a manifestação de um conjunto de alterações físicas, sensitivas, cognitivas, emocionais e de conduta. Considerando que o perfil de alterações depende, entre outros fatores, da localização das lesões, do impacto das lesões na rede de conectividade neuronal, da presença ou não de comorbilidades, do curso evolutivo da doença e da condição pré-mórbida do paciente, não é possível, à priori, assumir um perfil de alterações padrão, podendo as alterações manifestarem-se nos vários domínios de forma heterogénea e imprevisível. O que significa que existirá uma grande variabilidade na forma como cada paciente é afetado pela EM, mas com o denominador comum de terem a sua independência e qualidade de vida empobrecidas e comprometidas pela doença.
Todavia, apesar da marcada variabilidade e imprevisibilidade associada às características da EM, a nível físico podem ocorrer alterações dos pares de nervos cranianos, causadoras de dor e perda de acuidade visual (i.e., nevrite ótica), visão turva, visão dupla, oftalmoplegia internuclear; alterações cerebelosas, frequentemente associadas a alterações motoras, que se manifestam por desequilíbrios na marcha, descoordenação motora, disartria, tremor intencional, nistagmo, vertigens; alterações motoras, como a fraqueza muscular (podendo variar entre uma ligeira paresia até à total paralisia dos membros envolvidos), aumento do tónus muscular com espasticidade e reflexos osteotendinosos vivos, o que condiciona muito os movimentos e a marcha; alterações esfincterianas do trato urinário (e.g., micções imperiosas e frequentes, incontinência urinária) e do trato fecal (e.g., obstipação); alterações sexuais que podem estar relacionadas com as alterações emocionais, orgânicas ou ambas (e.g., perda de sensibilidade, paresia, dor, espasticidade e impotência sexual) e alterações sensitivas, como a perda de sensibilidade numa região do corpo de forma persistente, dor regional, sensação de anestesia em partes do corpo, sensação de formigueiro (parestesias), entre outras4. Além destas, acresce a fadiga que é sentida pela generalidade dos pacientes com EM.
No domínio emocional, as alterações caracterizam-se principalmente por sintomas depressivos e ansiogénicos, e manifestam-se por isolamento social, irritabilidade, pessimismo, desânimo, preocupações, ruminações, empobrecimento das capacidades para realização das atividades diárias e do desempenho cognitivo, entre outras. Desconhecendo-se se estas alterações são decorrentes dos mecanismos subjacentes à doença, reativos à doença ou ambos, mas contribuem para acentuar as dificuldades e incapacidades associadas à EM.
A nível cognitivo destacam-se com frequência a lentificação da velocidade de processamento de informação, as alterações de atenção/concentração e de memória. Contudo, por via da interdependência funcional dos processos cognitivos, a partir do momento em que uma função básica está alterada, qualquer outra (nomeadamente as mais complexas, como as funções executivas) pode ter o seu desempenho subotimizado ou alterado, o que significa que qualquer função ou processo cognitivo pode estar alterado num paciente com EM. O que, a par da EM ser uma doença neurodegenerativa, fundamenta a importância e a necessidade da integração da intervenção neuropsicológica – avaliação neuropsicológica, reabilitação cognitiva e neuroestimulação – desde o início do diagnóstico, por forma a permitir o acompanhamento da evolução do perfil neuropsicopatológico preservando a independência, a participação social e a qualidade de vida do paciente por mais anos.
Espero que tenha sido um tema do seu interesse e que de alguma forma lhe possa ter sido útil.


Referências bibliográficas
1 Machado, A., Valente, F., Reis, M., Saraiva P., Silva, R., Martins, R., Cruz, S., & Rodrigues, T. (2010). Esclerose Múltipla: Implicações sócio-económicas. Acta Médica Portuguesa, 23: 631-640.
2 Bruna, O., Roig, T., Putuelo, M., Junqué, C., & Ruano, A. (2011). Rehabilitación neuropsicológica: intervención y prática clínica. Elsevier Masson, Barcelona: Espanha.
3 Hawkins, S.A., & McDonnell, G.V. (1999). Benign multiple sclerosis? Clinical course, long term follow up, and assessment of prognostic factos. Journal of neurology, Neurosurgery, and Psychiatry, 67: 148-152. Doi: 10.1136/jnnp.67.2.148
4 Sá, M.J. (2009). Neurologia Clínica: compreender as doenças neurológicas. Universidade Fernando Pessoa, Porto: Portugal.